Trabalho Infantil e trabalho escravo atual: qual a relação?
- paticampinas
- 9 de fev. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de fev. de 2022

…onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e a única coisa a que tínhamos direito era morar lá até quando os senhores quisessem e a cova que nos esperava fosse cavada…
- Itamar Vieira Junior, Torto Arado
O trabalho escravo contemporâneo ou em condição análoga a de escravidão, de acordo com o art. 149 do Código Penal, é caracterizado como submeter alguém a “trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, [e/ou] a condições degradantes de trabalho, [e/ou] restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” (BRASIL, 2003). A pena para quem faz isso é “reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência” (Idem), sendo que a pena é aumentada pela metade se o crime é cometido contra crianças ou adolescentes. Esse tipo de trabalho se dá principalmente em áreas rurais, como no plantio de café ou na carvoaria, mas também acontece em meio urbano, em oficinas clandestinas de costura, na construção civil, ou em serviços domésticos (como mostra a reportagem publicada no G1 em 02/02/2022, revelando o resgate de uma mulher da condição de trabalhadora doméstica escrava em que estava desde seus 15 anos).
Diferentemente da escravidão antiga, que durou do século XVI ao XIX no Brasil, o trabalhador escravo contemporâneo não está preso ao seu empregador como posse deste. Nessa modalidade mais recente, em geral, o trabalhador é atraído por uma promessa de emprego que lhe daria melhores condições de vida. Porém, ao iniciar a atividade, ou ele é literalmente forçado a trabalhar sem remuneração, ou passa a ser cobrado pelo uso dos instrumentos de trabalho, de objetos de uso diário (como luvas ou botas para andar na mata) e de sua comida. Neste caso, o trabalhador passa a ser, então, preso ao seu empregador por um sistema de dívidas, no qual ele tem que continuar trabalhando não para receber seu salário, mas sim para pagar suas dívidas que nunca acabam, sofrendo constantes ameaças para se manter nessa condição e não fugir do local de trabalho, podendo ter sua liberdade restringida ou seus documentos retidos. O que resulta disso é um tipo de escravidão que fere por completo a dignidade humana e, muitas vezes, engana a pessoa fazendo ela pensar que a situação é justa.
Mas o que isso tem a ver com o Trabalho Infantil?
De acordo com procuradoras do Ministério Público do Trabalho (MPT), em live organizada pela Rede Peteca no dia 28/01/2022, de todas as pessoas resgatadas pelo MPT em situação de trabalho escravo ou análoga, mais de 90% delas começaram a trabalhar quando ainda eram crianças. E mais: em 2021, de todas as pessoas resgatadas nessa situação, 64 delas eram menores de 18 anos.
O que explica isso é que, em muitos casos, os pais que estão nessa situação de trabalho enxergam que seus filhos devem trabalhar como uma necessidade para que o trabalho familiar possa render mais, além de que seria importante para os filhos aprenderem, desde cedo, uma atividade que lhes gere uma sobrevivência no futuro.
Ou seja, o Trabalho Infantil está intimamente ligado ao trabalho escravo contemporâneo, já que este costuma fazer suas vítimas quando elas ainda são crianças.
Esse tipo de trabalho, caracterizado pela supressão da dignidade e liberdade do trabalhador, traz graves consequências para as crianças e adolescentes que o realizam.
De acordo com o projeto “Escravo, nem pensar!”, da ONG Repórter Brasil,
“o trabalho infantil prejudica o desempenho escolar e pode acabar fazendo com que a pessoa abandone os estudos. Sem boa qualificação profissional, diminuem as oportunidades de trabalho. Acostumados a condições de vida difícil desde cedo, esses trabalhadores ficam ainda mais vulneráveis à exploração”.
Em outras palavras, as crianças e adolescentes em situação de trabalho escravo enfrentam não apenas as desumanas condições em que estão submetidas, mas também levam pesadas consequências para o resto de suas dias, podendo nunca conseguirem sair desse tipo de trabalho ou, se saírem, não terem oportunidades reais para a melhoria de suas vidas. Não à toa, “todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório” são classificadas entre as piores formas de Trabalho Infantil pela Convenção no 182 da Organização Internacional do Trabalho (BRASIL, 2008).
Por isso, apesar de ser muitas vezes escondido, o Trabalho Infantil escravo acontece e faz diversas vítimas por todo o Brasil. Devemos ter consciência de sua existência e agir para sua erradicação.
Não é porque esse tipo de trabalho é invisibilizado que nós podemos fingir que ele não está na frente dos nossos olhos, nas roupas que usamos ou nas comidas que comemos.
Para denunciar uma situação de Trabalho Infantil escravo, ligue para o MPT de sua região ou Disque 100.
Por Gustavo Torres Gonçalves
Formado em Ciências Sociais e Antropologia
Socioeducador do P.A.T.I. Campinas
Referências:
BRASIL. Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008. Regulamenta os artigos 3o, alínea “d”, e 4o da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação, aprovada pelo Decreto Legislativo no 178, de 14 de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000, e dá outras providências. Brasília, DF, 12 jun. 2008
BRASIL. L10803. LEI No 10.803, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Brasília, DF, 11 dez. 1993
Escravo, nem pensar!. “O que o trabalho infantil tem a ver com o trabalho escravo?”. Disponível em: <https://escravonempensar.org.br/livro/4-trabalho-infantil/#3> (Acesso em 02/02/2022)
Melo, Amanda; Andrade, Hugo. Mulher é resgatada após 32 anos em situação análoga à escravidão na casa de pastor e professora no RN. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2022/02/01/mulher-e-resgatada-apos-32-anos-em-situacao-analoga-a-escravidao-na-casa-de-pastor-e-professora-no-rn.ghtml> (Acesso em 03/02/2022)
Rede Peteca. SEMINÁRIO SOBRE TRABALHO ESCRAVO e conexões com o trabalho infantil. Youtube, 28/01/2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=63xLXt3jcyI&t=420s&ab_channel=RedePeteca> (Acesso em 02/02/2022)
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. 1a Reimpr. São Paulo: Todavia, 2019.
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